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O Único Imóvel da Herança e o Direito Real de Habitação: Quando a Proteção do Cônjuge Encontra Limites4 min read

Uma das situações mais delicadas em um processo de inventário ocorre quando o único bem deixado pelo falecido é o imóvel que servia de residência à família. De um lado, temos o cônjuge ou companheiro sobrevivente, amparado pelo direito real de habitação, que lhe garante, em tese, a permanência no imóvel. Do outro, os demais herdeiros — muitas vezes filhos — que veem o patrimônio herdado indisponível, sem possibilidade de venda, aluguel ou partilha efetiva.

Durante muito tempo, prevaleceu a ideia de que esse direito do cônjuge sobrevivente seria absoluto e inquestionável. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem, em decisões recentes, sinalizado uma mudança importante: o direito real de habitação deve ser interpretado à luz da boa-fé e da função social da propriedade, podendo ser relativizado quando sua aplicação causar prejuízo desproporcional aos demais herdeiros.

O Conflito Central: Proteção x Propriedade

O artigo 1.831 do Código Civil assegura ao cônjuge sobrevivente o direito real de habitação sobre o imóvel que servia de residência do casal, independentemente do regime de bens adotado. Trata-se de um direito personalíssimo, intransferível e gratuito, que visa proteger a dignidade de quem perdeu o parceiro, garantindo-lhe moradia vitalícia.

Contudo, quando a aplicação literal dessa regra gera desequilíbrio patrimonial entre os herdeiros, surge o conflito. Imagine o seguinte cenário: os filhos herdeiros enfrentam dificuldades financeiras, e o único bem da herança é um imóvel. Se o cônjuge sobrevivente, apesar de possuir outras fontes de renda ou até outros imóveis, permanece no local, impedindo qualquer uso econômico pelos demais, o que era um mecanismo de proteção pode se tornar um obstáculo à legítima partilha do patrimônio familiar.

A Nova Lente do STJ: Análise do Caso Concreto

Com base nos princípios da função social da propriedade, da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso de direito, o STJ vem afirmando que o direito real de habitação não é absoluto, devendo ser analisado à luz das circunstâncias específicas de cada caso.

Um exemplo paradigmático é o REsp 2.151.939/RJ, julgado pela Terceira Turma do STJ. Na ocasião, a viúva recebia pensão integral e possuía mais de R$ 400 mil em aplicações financeiras, enquanto os herdeiros — irmãos do falecido — viviam em situação de vulnerabilidade econômica, com filhos e netos menores. Diante desse contexto, o Tribunal concluiu que a manutenção do direito real de habitação contrariava sua finalidade social e representava abuso de direito, decidindo por sua relativização.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que a proteção legal ao cônjuge sobrevivente não pode servir para bloquear o exercício do direito de propriedade dos demais herdeiros quando ausente a real necessidade de habitação.

Nos julgados mais recentes, os tribunais têm considerado os seguintes critérios para avaliar se o direito de habitação deve ser mantido:

  1. Condição financeira do cônjuge sobrevivente
    • Ele ou ela realmente necessita daquele imóvel para viver dignamente? Ou possui outras propriedades, fontes de renda ou condições de morar em outro local?
  2. Situação dos demais herdeiros
    • São os demais herdeiros economicamente vulneráveis? A alienação ou utilização do bem seria essencial para sua subsistência, moradia ou cuidados com a saúde?
  3. Finalidade da ocupação
    • O cônjuge efetivamente utiliza o imóvel como residência habitual, cumprindo sua função social, ou apenas permanece no local sem necessidade, impedindo que os demais usufruam da herança?

Essa análise casuística permite ao Judiciário adotar uma postura mais justa e proporcional. Quando demonstrado que o cônjuge sobrevivente não precisa do imóvel para sua moradia digna e que sua permanência causa prejuízo excessivo aos herdeiros, o direito pode ser relativizado ou até mesmo afastado.

Conclusão: Entre a Proteção e o Abuso, o Equilíbrio

A posição atual do STJ não suprime o direito real de habitação, mas reafirma seu propósito essencial: proteger quem realmente necessita. A Corte afasta, assim, a lógica do “tudo ou nada” e adota uma visão mais ponderada, em que o direito de propriedade dos herdeiros também merece tutela.

Essa evolução jurisprudencial ressalta a importância do planejamento sucessório adequado, por meio de instrumentos como testamentos, doações com cláusulas específicas ou acordos patrimoniais. Além disso, em disputas envolvendo o único imóvel da herança, a assessoria jurídica especializada é fundamental — seja para o cônjuge que busca garantir sua moradia, seja para os herdeiros que se sentem prejudicados por uma ocupação desnecessária.

Este artigo tem caráter meramente informativo e não substitui a consulta a um profissional do Direito.

Dr. Danilo Fernandes de C. Silva

Cargo: Advogado

OAB: 354.002

Atuação: Cível – Família – Sucessões – Trabalhista

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